quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O Meu Jardim


Chamo-me Gil, tenho 19 anos e moro num apartamento rodeado por escolas, um hospital e um bingo. Infelizmente, não tenho memórias de viver noutro local, visto que me mudei para aqui aproximadamente um ano após ter nascido. Durante esse curto espaço tempo, morei no Alentejo, numa pequena vila no meio do nada. Nada esse antigamente composto por longas planícies alentejanas e bosques inexplorados onde a natureza é rainha. Nada esse que agora sofreu com a avareza, com a inveja e com a sede de poder do ser humano. Nada esse onde agora se erguem casas que causam distúrbios na antigamente linda paisagem. Nada esse onde fui concebido, onde a minha semente foi jogada à terra.

Num desses aglomerados de árvores fui cultivado durante 10 meses e 8 dias, tendo decidido então brotar, conhecer o exterior do solo que me rodeava por todos os lados. No entanto, pouco ou nada conheci nesses tempos, fui retirado dali com carinho e re-plantado num jardim vazio, sem nada à volta. Durante anos e anos cresci, à minha volta nasciam outras plantas no jardim, cresciam e no final acabavam por estagnar, ou morrer. Ao fim de 10 anos brotou uma flor que conseguia acompanhar o meu crescimento. Estranhei, claro, contudo não me questionei sobre o que seria aquele ser que se desenvolvia ao mesmo ritmo que eu, sem abrandar. Era algo de maravilhoso, algo que eu nunca havia visto antes. Hoje sei o seu nome: um amigo.

Nos meus primeiros 10 anos de vida, eu vivia apenas para mim. Não tinha grande interesse nos outros nem no que faziam, a menos que fosse algo que contribuísse para o meu enriquecimento pessoal. Pode dizer-se que era invejoso, sim. Mas na verdade, acho que apenas não conhecia bem o mundo onde vivia e queria descobri-lo. Usava tudo e todos para obter o que queria, para saber o que queria. Havia, no entanto, algo que não sabia. Não me recordo se não o sabia por falta de interesse ou por falta de coragem. Mesmo assim, lembro-me que era algo que para mim se tratava de um assunto delicado, não queria falar nem pensar muito nisso. Importando-me apenas comigo, arranjava pessoas que conseguisse manipular, que pudesse usar como queria. Hoje vejo claramente o porquê de ter tido inúmeros inimigos, ao contrário do que acontecia na altura. Fui habituado desde pequeno a que todos os meus desejos fossem realizados, que todos me obedecessem e que se movessem por minha causa. Algo que me causou uma grande deficiência no nível das relações inter-pessoais. Num certo ponto da minha vida não conseguia entender quem gostava ou não de mim, mas isso foi mais tarde. Voltemos ao que aconteceu 10 anos após eu ter visto o que estava além do solo.
Nesse Verão conheci uma pessoa alguns anos mais nova que eu. Este rapaz despertou-me a atenção, algo que era raro. Aproximei-me e falei com ele. Ainda me lembro do local e de como decorreu a conversa, é possivelmente das memórias mais claras que tenho, mas não é esse o objectivo deste texto.

Esta flor crescia a meu lado, acompanhava-me. Era extraordinário. Queria saber mais e mais sobre ela. Não queria separar-me nunca dela. E lutei por isso.

Esta amizade fez-me mudar muito. Aprendi a ver as pessoas não apenas como objectos que podia usar, mas como semelhantes a mim, com sentimentos. No entanto, apercebi-me disso tarde demais. Estava numa turma onde metade das pessoas me conheciam há vários anos, a outra metade já me conhecia também, apesar de lidar comigo há pouco tempo. Felizmente, no 7º ano a minha turma foi dividida em duas e acrescentados novos indivíduos a cada uma. A minha primeira reacção foi comunicar com os novos membros da turma. Consegui aproximar-me de algumas pessoas, mas continuava a ser odiado por grande parte da turma. Nesse ano apercebi-me que a minha fama já se tinha estendido pela escola, tendo a minha história atingindo outras pessoas. Eu, que estava mudado, não retaliava. Durante os três anos seguintes fui gozado e humilhado pela minha escola. Fora dela não conhecia praticamente ninguém, passava os dias a estudar, continuava a querer saber mais e mais sobre o mundo à minha volta, desprezando em parte as outras pessoas. Era um excelente aluno, com média de 5, os meus professores adoravam-me. Este facto fazia com que houvesse ainda mais gente a não gostar de mim, talvez tivessem inveja, não sei. No 9º ano cheguei a ser acusado de subornar os professores para ter boas notas, não foi agradável. No entanto, consegui finalmente nesse ano um pequeno grupo de pessoas que gostavam de mim. Sentia-me bem com eles, mas nunca os consegui chamar de verdadeiros amigos.

Novas flores cresceram então à minha volta, mas nenhuma me conseguia acompanhar como a primeira. Houve um momento em que cresceram com uma rapidez tal que me perturbou, pensei que conseguissem chegar ao nível da primeira, mas subitamente estagnaram.

Terminou o 9º ano, cada um de nós tinha que escolher o que fazer no futuro e que área seguir no secundário. Eu estava indeciso entre ciências e línguas, os dois mundos distintos. Fiz os tão aclamados testes psicotécnicos que supostamente me iriam ajudar a decidir. Resultados? 50% línguas, 50% ciências. Os testes serviram apenas para me confundir mais. Todos me diziam que em ciências teria mais oportunidades no futuro, que seria melhor e que o meu cérebro não deveria ser desperdiçado numa área como línguas. Este tipo de comentários deixava-me furioso. Naquele momento eu tinha na cabeça que queria ser tradutor, portanto decidi-me por línguas, contrariando tudo e todos. A escola para onde iam todas as pessoas do meu grupo não tinha o curso de línguas, mas isso não me impediu e matriculei-me em Línguas, na escola em frente à minha casa. Após todo o stress de provas globais, notas, escolhas de cursos e afins, a minha escola organizou um arraial. Eu e o meu grupo não íamos perder a última oportunidade de estarmos juntos naquela escola e fomos. Foi uma noite que ficou marcada na minha memória. Após percorrer todas as bancas, movidos pela saudade apesar de ainda estarmos juntos, entrámos à socapa por uma janela no pavilhão onde estava a sala em que tínhamos aulas habitualmente. Conseguimos então entrar na nossa sala, sentamos-nos cada um no seu lugar habitual, como se nos estivéssemos a preparar para ter uma qualquer aula. Foi mágico, começamos todos a chorar. Tínhamos saudades, apesar de ainda ali estarmos. Tínhamos saudades daquele ano que estava prestes a acabar. Tínhamos saudades dos berros dos professores e dos auxiliares que viriam a escorraçar-nos dentro de minutos. Tínhamos saudades de desrespeitar as regras apesar de as estarmos a desrespeitar por ali estarmos. Após algum tempo, fomos ouvidos e expulsos dali, com berros de auxiliares e de um vigilante. Quando chegámos ao arraial outra vez, o karaoke tinha acabado de terminar. Tirámos o microfone das mãos de um professor qualquer e começamos a cantar. Não me lembro o que cantei, mas lembro-me como cantei: com um rio de lágrimas a correr pela cara, com um sorriso mais redondo que uma circunferência, aos pulos, agarrado ao resto das pessoas que comigo partilhavam o palco. A noite era nossa, ninguém nos podia tirá-la.
Ou pelo menos, era o que eu pensava.

O grupo de flores que cresciam rapidamente parou. Deixaram de crescer. Parecia que o tempo tinha parado. A primeira era a única que me continuava a acompanhar. E apesar disso, entristeci. Nunca antes me tinha sentido assim, parecia que me tinham cortado o caule, que tinha ficado sem canal para receber nutrientes e que lentamente murchava e morria. A flor que eu chamava de amigo, por esta altura, continuava no alto, sem capacidade de me ajudar, por mais que o quisesse fazer. Apenas chamava por mim, para que eu voltasse. Então, começaram a surgir novas flores que me ajudaram  a subir, com o seu crescimento.

Após as férias, a minha vida mudou. Estava numa escola nova onde não conhecia ninguém, onde podia recomeçar a minha vida. Assim o fiz, esqueci o passado e recomecei. Neste ano decidi fazer amigos fora da comunidade escolar, pelo menos assim nunca teria que sofrer o que tinha sofrido há uns meses atrás. Ganhei independência para sair da minha cidade e encontrar pessoas noutros locais. Consegui rapidamente a confiança de várias pessoas, dentro e fora da escola. Até hoje não me separei da maioria destas pessoas, não tenho portanto muitas histórias para contar sobre estas pessoas, visto estarem quase todas ainda no seu desenvolvimento. No entanto, há uma ou duas que me marcaram imenso e são dignas de serem contadas, na minha opinião.
No 12º ano decidi abandonar por completo o meu futuro em línguas, decidi que queria seguis Física, mas especificamente Astronomia. Para além de ter a pressão de acabar o 12º no meu curso, tinha ainda que estudar sozinho para conseguir passar nos exames de Matemática e Ciências Físico-Químicas, de modo a poder entrar no curso que queria na faculdade. Felizmente consegui. E então, aproveitei o meu Verão ao máximo.

Foi nesta altura que se começou a erguer uma nova flor, uma flor que fez finalmente jus ao meu amigo, uma outra flor que conseguia crescer à mesma velocidade que eu, que me acompanhava. Agora tinha duas companheiras de crescimento, estava cada vez mais feliz.

Com uma nova pessoa na minha vida, iniciei os estudos universitários. No entanto, decidi não me esforçar minimamente, apesar das minhas enormes dificuldades. Iria dedicar este ano da minha vida aos meus amigos, um conceito que para mim era ainda um pouco novo e desconhecido. Talvez não tenha sido a melhor escolha, mas era algo que eu necessitava de fazer - durante este ano libertei-me de tudo, fiz tudo o que quis sem me preocupar. Acho que posso dizer que foi o ano mais feliz da minha vida e apesar de ter tido alguns contratempos pelo meio, superei-os graças aos meus amigos. Mas a felicidade é efémera, de um momento para outro tudo pode ir abaixo. E foi.

A segunda flor que me acompanhava estagnou, parou. Hoje em dia ainda a chamo, lá de cima, com esperanças que ela volte a crescer. Ela era muito importante para mim. Demasiado importante talvez. Por causa desta estagnação ainda hoje sofro e sofrerei no futuro, não consegui ainda ultrapassar o facto de a ter perdido e sonho ainda reencontrá-la um dia. 

Então, penso, reflicto, tal como já o tinha feito no passado. Será que mereci os pequenos momentos de felicidade que tive na vida? Será que devo continuar a procurar esses pequenos milagres que acontecem quando menos espero?
Há dois anos atrás talvez não fosse capaz de responder, mas hoje consigo: sim.

A minha vida marcou a de outros, tal como a de outros marcou a minha. É um pequeno milagre que passa despercebido à maioria das pessoas e é algo que não deveria ser simplesmente ignorado. Não vou desperdiçar tudo o que recebi, vou continuar a seguir em frente, de cabeça erguida.
Na verdade, por mais que às vezes pense o contrário, sou feliz. Sou feliz porque tenho flores que, mais ou menos depressa, vão crescendo comigo. Sou feliz porque sei que haverão mais e mais flores a brotar no meu jardim. Sou feliz porque o meu jardim fica mais bonito a cada dia que passa.

Mas acima de tudo, sou feliz porque acredito que posso ser feliz.

Agora, resta-me fazer os outros acreditar.